terça-feira, 25 de junho de 2013

Verde que mata

Fonte: Revista Galileu

As estratégias de caça de algumas das plantas carnívoras mais estranhas do mundo são perturbadoras, muito além do que os botânicos poderiam imaginar

Monstruosas comedoras de 
homens. Devoradoras de donzelas. Flores do mal. Desde que a ciência encontrou as primeiras pistas de que algumas plantas tinham uma queda por carne, surgiram histórias terríveis sobre o que pode estar escondido nas selvas distantes. Muitos leigos engoliram relatórios sobre plantas que comem humanos e flores com sede de sangue, mas naturalistas tiveram dificuldade em aceitar a idéia de que vegetais poderiam ser carnívoros. Nos anos 1770, o naturalista sueco Carl Linnaeus descartou a hipótese como sendo "contra a ordem da natureza". Mesmo um século depois, quando Charles Darwin relatou suas observações sobre plantas que capturavam e devoravam insetos, alguns ainda se recusaram a acreditar. Um botânico achou a noção tão ofensiva que definiu os estudos de Darwin como "lixo científico".
Desde então, biólogos têm se acostumado com a idéia de que algumas plantas comem animais. Mas mesmo eles não podiam imaginar as novas descobertas sobre um grupo de plantas carnívoras, as nepentes, que estão mandando para o ralo algumas crenças antigas. Experimentos cuidadosos, vídeos em alta velocidade e muito trabalho duro nas florestas de Bornéu, na Indonésia, estão revelando que essas plantas são muito mais capciosas e ativas na hora de aniquilar suas presas do que jamais se suspeitou. Existem até indícios de que algumas plantas carnívoras possuem "estratégias de caça" parecidas com as de animais predadores.

"Plantas carnívoras têm sido estudadas por tanto tempo que seria possível imaginar que tudo já tivesse sido descoberto", afirma Walter Federle, que investiga a biomecânica de insetos na Universidade de Cambridge. "Mas botânicos trabalharam principalmente com espécies herbárias ou plantas em estufas. Estudos conduzidos sob condições naturais estão mostrando um lado totalmente novo sobre o modo como as plantas carnívoras capturam e matam suas presas."
Com suas bocas entreabertas e marcas em vermelho-sangue, as nepentes têm uma aparência apavorante e podem capturar uma grande variedade de bichos, a maioria insetos, mas também aranhas, escorpiões, centopéias, lesmas, sapos e, até mesmo, um rato. Ainda assim, suas armadilhas não são sofisticadas quando comparadas às de outras plantas carnívoras.
A dionéia se fecha sobre insetos desprevenidos em uma fração de segundo, a drosera efetivamente abraça suas vítimas com armadilhas do tipo "papel pega-mosca", enquanto a utricularia ostenta armadilhas de sucção explosiva. 
Dionéia
Norte-americana, tem rizomas que se enterram em profundidades de até 10 cm, o que faz com que ela sobreviva a incêndios florestais
Como ela mata
Seduzir para assassinar. Essa é a tática da dionéia, que exala um néctar que atrai os insetos. Pêlos táteis funcionam como radar e indicam a proximidade de uma possível presa. Quando isso ocorre, a mandíbula se fecha com força, muita força. Tanto que alguns insetos morrem pelo impacto, e não pela ação dos líquidos segregados pelas glândulas digestivas da planta

Mesmo com toda a sua aparência repugnante, a nepente parece estar equipada apenas com a mais básica das armadilhas, a "cilada" passível. Pelo menos era o que pensavam os botânicos.
A maioria das cerca de cem espécies de nepentes cresce em florestas úmidas do sudeste da Ásia, geralmente em solos pobres ou como epífitas - plantas que vivem sobre outro vegetal, mas sem "roubar" nutrientes. Para complementar sua alimentação, elas capturam e digerem animais em cavidades cheias de fluido. Essas bolsas são folhas altamente modificadas e, apesar de variarem muito em tamanho e forma - de tubos do tamanho de um dedo a enormes jarros de 3 litros -, todas seguem um mesmo padrão. A boca tem as extremidades - ou peristômios - bem pronunciadas, com glândulas que produzem néctar logo abaixo da borda interior, que atrai a presa para a cavidade. Por dentro, as paredes são organizadas por zonas. A zona superior é macia e encerada, enquanto as paredes abaixo da superfície da cavidade com fluido são pontilhadas por glândulas que produzem enzimas digestivas que ajudam a dilacerar os cadáveres das presas afogadas.
Nepentes
Natural da Ásia, especialmente da Indonésia, esse tipo de planta é encontrado em mais de 70 espécies
Como ela mata
"Cuidado, piso escorregadio." Todo exemplar de nepente deveria vir com esse aviso. Vista de fora, ela parece inofensiva, com seu aspecto de cachimbo com tampa. Mas o néctar produzido pelas suas glândulas e o cheiro de possíveis animais decompostos em seu interior acaba atraindo seres incautos. Recoberta de um líquido pra lá de viscoso, a fenda da planta impossibilita que qualquer coisa pare em pé ali sem escorregar para o interior da urna. Lá há um líquido no qual as presas encontram o pior dos infernos. Segregada pelas glândulas digestivas, a substância dissolve um inseto rapidamente. O prato predileto das nepentes são as formigas, mas elas também degustam aranhas, rãs e até ratos.

Estudos anteriores concluíram que a zona encerada era uma parte crucial do mecanismo de armadilha. Apesar de as patas dos insetos geralmente poderem agarrar na mais lisa das superfícies, aqui eles são derrotados pelos cristais de cera que se soltam quando tocados. Em experimentos feitos em laboratório, nem formigas, nem moscas conseguiram manter as patas sobre a zona encerada. Inapelavelmente caíram dentro do fluido.
A cera também barrou a saída de todas que tentaram escalar para fora novamente. Ainda assim, Federle percebeu que não poderia dar o caso por encerrado. "Insetos freqüentemente caem e passam direto pela extremidade e para dentro do fluido, sem nem mesmo tocar na camada com cera", afirma ele. E mais: algumas espécies de nepentes não têm uma zona encerada, enquanto outras têm algumas cavidades com e outras sem. Mesmo assim, ambas são efetivas na captura de presas.
Na busca por uma explicação, Federle e seu colega Holger Bohn viajaram para as florestas pantanosas de Brunei, a noroeste de Bornéu. O plano era observar o comportamento de diversas espécies de formigas nas nepentes bicalcaratas, um tipo com cavidades sem cera.   
Infelizmente, houve pouca coisa para relatar. Como outros pesquisadores constataram anteriormente, é raro testemunhar o exato momento em que a planta captura o inseto. A maioria das formigas que vagou sobre uma cavidade saiu de novo sã e salva. Então Federle e Bohn tiveram uma revelação. Retornando ao seu campo de estudo, logo após uma chuva forte, eles ficaram espantados de ver todas as formigas que pisaram sobre a extremidade da cavidade escorregarem, sem saída, para dentro do fluido abaixo. No interior das cavidades, muitas outras formigas lutavam para boiar, indicando um influxo repentino e recente.
A razão era óbvia, mas completamente inesperada. Os peristômios das cavidades estavam particularmente molhados e brilhantes. Isso é raro, pois geralmente eles repelem a água na forma de gotas que rolam para fora. Há algo de diferente na química da superfície do peristômio que o torna altamente absorvente. Quando Federle pingou água sobre um peristômio seco, ele descobriu que ela se espalhava em segundos para formar uma película sobre a superfície.
De volta para casa, em experimentos em laboratório, ele e Bohn descobriram que essa película de água destruiu o apoio de uma formiga, evitando um contato mais próximo entre suas patas e a epiderme da planta. Como pneus de carros em uma estrada molhada, insetos sobre um peristômio molhado aquaplanavam diretamente para a entrada da cavidade. O efeito era tão dramático que Federle ficou espantado por ninguém ter percebido isso antes, mesmo que pesquisadores anteriores tenham, na verdade, colocado a extremidade como parte do mecanismo de armadilha. Não é "escorregadio... Pequenos insetos podem andar livremente sobre ele", um deles escreveu. "O peristômio parece oferecer um apoio seguro para grande parte dos visitantes invertebrados", concluiu outro. Claramente eles não haviam presenciado uma nepente em condições de umidade.
Mais investigações mostraram que o mecanismo do peristômio quando molhado é igualmente importante para as espécies de nepentes que têm paredes interiores enceradas. Na alata, por exemplo, Bohn e Federle descobriram que as paredes enceradas ajudavam a capturar presas quando o peristômio estava seco. Quando estava molhado, entretanto, a maioria das formigas caíam diretamente no fluido, e a taxa de capturas triplicava. "Nós suspeitamos que a aquaplanagem fora do peristômio é a armadilha fundamental. Outras estruturas de armadilha estão ausentes em algumas nepentes, mas a extremidade está presente em todas as espécies", diz Federle.
A tática de deslizamento da cavidade não é a única que foi revelada recentemente. Na França, a ecologista Laurence Gaume, da Universidade de Montpellier, e o físico Yoël Forterre, da Universidade de Provence, descobriram outro mecanismo inesperado e que se apóia nas propriedades peculiares do fluido da cavidade. Como Federle, Gaume estava intrigada pelo fato de as cavidades sem paredes enceradas serem bem-sucedidas na captura de insetos. Ela também havia estado em Brunei para estudar as cavidades, dessa vez da nepentes rafflesiana, uma espécie comum com um amplo espectro de presas. Gaume percebeu que o fluido da cavidade era viscoso e que filamentos fibrosos se formavam quando ela o esfregava entre os dedos. Ela também percebeu que insetos que caíam dentro desse fluido descobriam que era impossível sair dele. Em vez de repelir o fluido, eles logo ficavam molhados e afundavam. Gaume suspeitou então que o fluido possuía propriedades inusitadas que auxiliavam na captura e retenção da presa.
De volta à França, Gaume se juntou a Forterre para investigar. Eles rejeitaram qualquer tipo de ataque químico rápido: no laboratório, os insetos saíram do fluido, se secaram e seguiram seu caminho. A tensão da superfície também não entrou na conta: os insetos afundariam mais rapidamente se o fluido tivesse uma baixa tensão na superfície. Uma terceira possibilidade era o fluido ser composto por tensoativos, o que ajudaria a molhar os insetos. Os pesquisadores descartaram isso também quando descobriram que apenas insetos em movimento ficavam molhados e se afogavam. Se insetos imobilizados fossem atirados no fluido, eles permaneciam secos. Isso sugeria que quaisquer que fossem as forças, elas eram iniciadas pelos insetos.
Imagens em alta velocidade confirmaram que algo estranho acontecia. Jogadas dentro de um tubo de ensaio com água, moscas voaram para fora em segundos, e as formigas nadaram para as laterais e subiram. Ainda assim, quando jogadas em tubos com o fluido, nenhum inseto escapou.
"Primeiro eles lutavam", diz Gaume. "Logo começaram a ficar cobertos pelo fluido e impossibilitados de mover asas ou levantar patas." Em um momento especial da filmagem um filamento pegajoso visivelmente reprimiu a perna de uma mosca. Também ficou evidente que, quanto mais um inseto lutava, mais rápido era pego, como se estivesse preso em areia movediça.
Drosera
Só não há esse gênero de planta na Antártida. Seu nome vem do grego e significa "coberta de orvalho"
Como ela mata
Aqui, a armadilha é similar à do papel pega-mosca. O inusitado é o sistema de atração. Aos olhos dos insetos, essas gotículas que brilham ao sol parecem um refrescante orvalho. Só percebem o truque quando já estão atolados até a alma nessa gosma grudenta. Tentar fugir só piora a situação, pois os movimentos do inseto estimulam a planta a lançar novos tentáculos sobre o bicho, que termina seus dias completamente envolvido pelo muco transparente que sai da drosera. Depois de "embalado", o inseto é conduzido até o centro da planta, onde ficam as glândulas que segregam o líquido digestivo que vai fazer com o bicho a mesma mágica que o café com leite opera em bolacha maria.

Forterre percebeu que o comportamento do fluido era típico de líquidos complexos que contêm longas cadeias de polímeros, conhecidos como fluidos viscoelásticos. Qualquer movimento a partir do fluido deforma os polímeros, alongando-os como se fossem pequenas molas e gerando neles forças elásticas. Se o movimento cessar, os polímeros podem relaxar: "Se o movimento é lento, as forças elásticas têm tempo para relaxar, mas, se for mais rápido do que o tempo de relaxamento, elas podem alcançar valores enormes", afirma Forterre.
Suas medições mostraram que insetos que caem dentro do fluido movem seus membros tão rapidamente que as forças elásticas continuam crescendo. "Parece que estão nadando em geléia", diz Gaume. Para tornar as coisas ainda piores, enquanto a vítima tenta colocar um membro para fora do líquido, traz junto uma trilha de fluido que, em vez de se dispersar em gotas, estica, criando um filamento elástico. "Os filamentos são como cordas elásticas, que são difíceis de serem rompidas pelos insetos", diz Forterre.
Para as plantas que crescem em hábitats chuvosos, uma armadilha baseada em fluido elástico tem uma outra vantagem: continua funcionando mesmo quando muito diluído. Nesse caso, é eficiente mesmo com apenas 5% de sua concentração original. "Você precisa de apenas uma baixa concentração de polímeros para obter um efeito elástico", afirma Forterre.
Os pesquisadores estão agora investigando a química do fluido e suspeitam que ele possui polissacarídeos, assim como a goma de outras plantas viscoelásticas. Também querem saber qual a incidência dos fluidos em plantas carnívoras. "Temos informação preliminar que sugere que muitas espécies de nepentes podem usar uma armadilha elástica", diz Gaume. "É uma característica oculta. Pode ser mais comum do que imaginamos."
Para Federle, essas descobertas indicam que pode haver plantas carnívoras com outros meios de matar presas que ainda não foram descobertos: "Nós achamos que o peristômio úmido é provavelmente universal, mas há uma série de mecanismos para a retenção de presas". Para Gaume e Forterre, as descobertas aumentam a possibilidade intrigante de as cavidades não serem armadilhas tão passíveis como todos pensam. "As nepentes podem não mostrar um movimento tão dramático como o de outras plantas, mas o mecanismo de armadilha também é baseado em forças elásticas ativadas pelo movimento de um inseto", conta Gaume.
Utricularia
Encontrada nos cinco continentes, essa planta é das mais variadas, com alturas que podem atingir de 10 cm a 1 m
Como ela mata
Não se deixe enganar pela aparência singela. Essa planta é uma assassina eficiente e rápida. De suas bolhas ovais saem pêlos sensíveis ao toque. Coitado do inseto que tocar num deles. Com seu interior a vácuo, a utricularia abre a bolha e aspira brutalmente o condenado para o seu interior. Depois, mais calminha, a planta passa horas digerindo a presa. Em um ou dois dias, a armadilha está pronta para ser utilizada novamente

Os últimos estudos de Federle deram peso a essa idéia. Em 2005 e 2006, ele retornou a Brunei com Bohn e seu colega Ulrike Bauer e colocou sensores nos peristômios de exemplares de nepentes rafflesiana. Monitoramento dia e noite revelou que havia um ciclo diurno distinto de umidade, tivesse chovido ou não. Na maior parte do dia, as cavidades tinham as extremidades secas e não capturavam nada, mas, no começo da noite até logo cedo de manhã, elas ficavam molhadas e eficazes nas armadilhas.
A dramática mudança diária de umidade não era um simples resultado da condensação da água quando a noite esfriava. O time também observou um aumento na quantidade de néctar à noite, e seus experimentos mostraram que esse néctar é higroscópico, ou seja, absorve umidade do ar. Essas descobertas deixaram Federle confuso. Por que uma planta carnívora teria desenvolvido um mecanismo para armadilhas que funciona apenas intermitentemente? Ele acha que esse aparente defeito pode ser parte de uma estratégia para aumentar o número de insetos capturados.
Botânicos acreditavam que plantas carnívoras estavam sempre com as armadilhas prontas. Federle mostrou que esse não é o caso da nepente. O momento de a armadilha ser acionada varia não apenas entre o dia e a noite, mas também de acordo com o clima, quando as plantas crescem e o néctar é segregado. Federle diz que essa improbabilidade pode não ter evoluído pela mesma razão que animais predatórios caçam apenas intermitentemente, para tornarem mais difícil para suas presas desenvolver recursos e evitar a captura. "A improbabilidade é importante para as nepentes", diz Federle. "Formigas visitantes podem pisar sobre uma extremidade inofensiva ou escorregadia. Elas só não podem saber a situação antes de pisarem."

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